domingo, 3 de maio de 2015

O Tempo Dele

Ele cresceu num tempo novo. O tempo é sempre novo para quem nasce mas há tempos que sofreram um abalo tão violento e repentino que se desfiguraram por completo. Foi tudo tão rápido e de repente tudo era diferente. Ele nasceu na era diferente. Cresceu no tempo presente que só com esforço deixa adivinhar o passado. Cresceu num tempo em que não existem torres gémeas na América. Num tempo também em que os aviões não caem só por acidente; aliás, é surpreendente quando caem por acidente. Expectável é que alguém os faça cair, seja por que motivo for. Já pouco importa. Um co-piloto de mal com a vida é um motivo como outro qualquer. Ainda não se conhece nenhum dentista deprimido que implante cáries nas pessoas mas não seria estranho, nesse tempo em que ele cresceu. De resto, deixou de haver estranho. Nada é estranho. Quando muito há coisas insólitas. As coisas insólitas vendem jornais e são muito partilhadas entre as gentes no facebook. É um sítio desse tempo, o facebook, um sítio onde o insólito é depositado e explorado até à náusea. Ele cresceu nesse sítio também. Partilhou-o com gatinhos que fazem coisas engraçadas, talvez, mas sobretudo aborrecidas e partilhou-o com “gatinhas” que procuram fazer coisas engraçadas a quem quer que esteja aborrecido (o termo “gatinha” é usado pelas próprias como um conceito de marketing para a venda). Ele cresceu num tempo que substituiu a busca da verdade pela procura do insólito. Criaram-se televisões cuja missão é estarem atentas ao insólito para o reproduzirem nu e cru, transformaram-se jornalistas em expedicionários de coisas insólitas, transformou-se a Diana Chaves em apresentadora de televisão. O insólito permitiu abrir muitas portas. Para lá do beiral, estava sempre um abismo.

Ele cresceu num tempo em que era difícil crescer. Fisicamente sim. Teve a oportunidade de ficar grande e robusto. Ele quis isso mesmo e os donos dos ginásios aplaudiram essa vontade. Mas o tempo que se gasta a saltar à corda é o tempo que se gasta a saltar à corda e não tem efeitos no minuto seguinte. Porque no minuto seguinte pouco mais havia do que tardes de má música na televisão, bailarinas que vestidas ninguém dava nada por elas e o Nuno Eiró. Nesse tempo, os dedos iam-se adaptando aos telefones e tudo era pretexto para criar um número com indicativo 760. Eram 60 cêntimos mais IVA para o galheiro… Os 60 cêntimos e o IVA.

Ele cresceu num tempo novo, um tempo de pessoas velhas. O progresso e a evolução estão instalados mas é como se fosse preciso autorização para progredir e evoluir. E há uma burocracia gigante para quem quer ser e fazer. Uma burocracia de mediocridade, uma ditadura da ignorância como primado. Numa sociedade que se diz liberal, é irónico que perdure a estupidez como pensamento único.

(Crónica publicada no semanário A Voz de Trás-os-Montes, edição de 2 de abril de 2015)

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