quinta-feira, 30 de abril de 2020

Que as Vozes se Façam Ouvir


  • A existência de um sector cultural no país depois da pandemia é tão crucial como era a sua existência antes;
  • não precaver a manutenção desse sector agora é declarar-lhe uma morte anunciada;
  • assegurar a Cultura às populações é uma das funções do Estado, salvá-la em tempo de emergência é uma obrigação;
  • é importante preparar o futuro mas é urgente resolver o presente;
  • não há regime de teletrabalho para os artistas nem linhas de crédito os podem socorrer; linhas de crédito não se aplicam a uma actividade que não é, nem tem de ser, lucrativa; os seres humanos não têm todos de dar lucro ou nem só de pão vive o homem;
  • não peçam aos artistas que façam vídeos em casa para passar o tempo e criar conteúdo; eu também não vos peço que me façam bolos sem sequer vos oferecer um saco de farinha;
  • o presente precisa de medidas urgentes para manter a classe artística e os profissionais do espectáculo a salvo; só assim poderão dizer “presente” quando finalmente os deixarem entrar em cena, depois de todas as outras pessoas;
  • essas medidas podem ser profícuas, podem ajudar a definir um modelo novo, assim houvesse vontade de arriscar uma vida nova sem os mesmos formulários de sempre, os mesmos conceitos tecnocráticos de sempre, os mesmos de sempre;
  • preparar o depois é construir o que não havia antes;
  • se os artistas agora estão gravemente afectados é porque antes não estavam mais seguros;
  • a criação cultural é o que nos separa da barbárie, da ignorância e da submissão;
  • um país afirmativo é aquele que valoriza os seus artistas mais reconhecidos, dá lugar aos menos reconhecidos e deixa ouvir a voz dos novos criadores;
  • um país afirmativo não se afirma com meia dúzia, afirma-se com todos;
  • a Direcção Geral das Artes não pode ser só a direcção geral dos concursos;
  • a arte não é um concurso, na arte todos podem ir a jogo e ficar em jogo;
  • por estes dias, nós estamos a trabalhar, mesmo que vocês não vejam, e se não veem é porque não podemos mostrar.

Um país afirmativo não deixaria que, no futuro, tal como no passado, nas artes muitas vozes não se façam ouvir. E afinal os artistas só estão a pedir aquilo que qualquer cidadão pede, que lhes sejam atribuídos direitos. Porque os nossos deveres nós conhecemos e fazemos por cumpri-los. Assim nos deixem cumprir ainda mais.




domingo, 19 de abril de 2020

Há um problema com o 25 de Abril

A pouco menos de uma semana do 25 de Abril já o 25 de Abril parece que foi há uma semana. O ruído de intervenção é intenso e como em tudo o que é ruído e em tudo o que é de intervenção, a sensatez e a clarividência são quase inexistentes. No ruído, confunde-se o escuro com o claro, a luz com a sombra e a verdade com a verdadinha.
O 25 de Abril é daqui a uma semana, sensivelmente, e daqui a uma semana sabe-se lá como estaremos. A Páscoa foi há uma semana, exactamente, e há uma semana sabíamos como é que estávamos. Confundir comemorações oficiais de uma data oficial com as celebrações da Páscoa não é sério e só pode ser entendido como efeito do ruído, que normalmente não deixa pensar. Ao contrário do que titulava o Público, exageradamente, no dia 2 de Abril, a Páscoa não foi proibida. Não pôde realizar-se nas habituais celebrações que juntam muitos cristãos por todo o país mas os sacerdotes, os bispos e o Papa festejaram a Páscoa e fizeram as celebrações, através do online, das rádios e das televisões. Mais do que isso não era nem foi possível. Juntar à discussão sobre o 25 de Abril a impossibilidade de se realizarem funerais com muita gente é só desonesto. Trata-se de apelar a algo muito doloroso, que está a provocar muita dor em muitas pessoas hoje, para fazer um comparativo em que os membros da comparação não são comparáveis.
As chamadas comemorações do 25 de Abril são um acto oficial da Assembleia da República, a mesma que tem estado a funcionar sempre. Porque os órgãos de soberania não param em tempos de pandemia. Viktor Órban, da Hungria, discordará disto mas eu também discordo fortemente do que Viktor Órban faz. As chamadas comemorações do 25 de Abril não vão ser um arraial, uma sardinhada, um festival de música ou um beberete. Elas vão ser aquilo mesmo, um acto oficial, semelhante a muitas reuniões formais que o parlamento tem realizado por estes dias, com número reduzido de deputados, com menos pessoas do que habitual dentro da sala. É o mesmo parlamento que se reuniu duas vezes para aprovar estados de emergência, por exemplo. Pensemos que a Assembleia da República, no próximo dia 25 de Abril, vai estar a funcionar mas não é para aprovar um estado de emergência, é para fazer outra coisa. Parece-nos mal isso? Estaremos a ficar viciados em estados de emergência?
Se, de facto, a Assembleia tem estado a funcionar, dentro das limitações exigidas pelas normas de protecção contra o Covid-19, mas só no dia 25 de Abril é que se pretendia que ela não o fizesse, então o problema não é o Covid-19, o problema é o dia 25 de Abril. E esse é um problema que muitos terão de resolver consigo próprios. O que não parece honesto do ponto de vista intelectual é mascarar esse problema com uma preocupação sanitária.
A renovação da memória, o tornar presente tem um papel a desempenhar que é muito mais do que simbólico. Pensar sobre a democracia, olhar de novo e olhar novo para a democracia não é uma coisa de ontem. E não pode ficar suspensa porque há uma pandemia. A democracia e o valores a ela ligados vão ser muito necessários depois da pandemia. E, se não os tivermos presentes, facilmente nos deixaremos afundar no ruído. Facilmente ficamos viciados em estados de emergência.