quarta-feira, 20 de maio de 2020

Não se reinventa o que já está inventado

Também porque há um Ministério que não tem respostas nem as procura dar; também porque há uma ministra que desconhece o que tutela e trata-o com desdém e propaganda; também porque o desinteresse político pela Cultura em Portugal é sistémico; e ainda porque a relação da sociedade civil com a Cultura é deficiente; porque, por exemplo, as artes não fazem parte dos currículos escolares obrigatórios; porque os trabalhadores da Cultura são vistos com maus olhos por comentadores de sofá; porque ainda somos tratados como subsídio dependentes, quando, na verdade, contribuímos como os outros para a riqueza nacional, para as finanças públicas e para o sistema de Segurança Social (nunca me passaria pela cabeça achar que um professor ou um médico é um subsídio dependente mas quando toca aos profissionais da Cultura parece que há quem ache que temos de pedir desculpa por existir); porque quando passamos por dificuldades somos chamados de choramingas; porque, numa democracia, reivindicar alguma coisa nunca pode ser sinónimo de choramingar, ou então há qualquer coisa que está a falhar na percepção dessa democracia; porque nos pedem que nos reinventemos quando ainda temos tanto para fazer de coisas que já estão inventadas; a reinvenção que nos propõem é fazer directos no instagram?!, a sério que querem ver directos no instagram para o resto da vossa vida?! E os técnicos e os frentes de sala e as pessoas das bilheteiras e os produtores e os cenógrafos, figurinistas, directores de cena, sonoplastas, pintores, escultores, escritores, arqueólogos, bibliotecários, investigadores e tantos, tantos mais, vão todos fazer directos para o instagram?! É a isso que se chama reinvenção? Não, isso não é reinvenção. A reinvenção acontece todos os dias na vida de quem trabalha nas Artes e na Cultura, todos os dias em que escreve, pesquisa, ensaia, desanima e volta a tentar, ultrapassa obstáculos enormes para criar, a reinvenção acontece todos os dias e não é no instagram, é na vida. O texto já vai longo, achou eu, mas estou só a reinventar-me. A grande reinvenção era, de repente, acordar num país em que estas pessoas todas que referi tinham um espaço e que não precisassem, como estou, na prática, a fazer agora, de mendigar pela valorização do seu trabalho. Quando nos pedem reinvenção, não sabem o que estão a pedir porque passam a maior parte do tempo distraídos do que nós fazemos.

Por tudo isto e pela reinvenção de tudo isto, amanhã as trabalhadoras e os trabalhadores da Cultura e das Artes estão na rua! Não podemos estar todos, a protecção da saúde e o distanciamento social não favorecem a união, mas estamos unidos e unidas na mesma, entre os que vão à rua e os que darão suporte a partir das suas casas. Por todos os colegas que estão a passar graves necessidades mas também porque o futuro não pode ser mais igual ao que fomos até agora, o futuro da Cultura não pode ser desprezo, desespero e súplica. Portugal vale muito mais do que isso enquanto país e enquanto povo.