Nota da encenação
Este espectáculo procura fixar memórias de uma identidade coletiva. Só que nem o teatro é um bom sítio para fixar seja o que for, porque é efémero no seu conceito, nem a identidade coletiva é assim tão possível de delimitar. Mas tentamos; e, no limite, as histórias que aqui aparecem são trazidas de um lugar onde sopram muitos ventos e as ideias são como aparições, à noite, à beira de um riacho.
Há uma vila imaginada, ausente do dispositivo cénico, que apenas nos chega pelas palavras dos/as intérpretes. É uma vila trazida pelas personagens, todas deslocadas do ambiente de que tanto falam. No espaço cénico entram muitas histórias e pessoas, mas se não estivermos atentos nem as vemos. E outra coisa de que o teatro precisa sempre urgentemente é dar a ver.
A ideia de arquivo traduzida na cenografia do espectáculo remete para o repositório de ideias que arrumamos, enquanto avançamos a perseguir outras novas. Ilustra também o que fica submerso no jogo das impossibilidades com que se debate a criação artística. As pastas e dossiês são, ainda, símbolos da burocracia contabilística que preside, hoje, ao trabalho artístico. Formulários, folhas excel, facturas com número de contribuinte ocupam muito espaço nos discos rígidos da nossa memória. E é quando arquivada e sem resultado artístico produzido, que a burocracia revela a sua incapacidade para nos servir.
Neste espectáculo, tudo o que vemos e ouvimos vem do exterior. Há sempre uma brisa suave ou uma ventania muito forte a trazer ecos para a cena. Tudo o que vemos e ouvimos não é representável num espaço assim, num palco.
O processo criativo seguiu uma procura pelo tempo certo que é preciso para nos definirmos neste espaço. Não é inovador, é isso que o teatro faz, porventura desde sempre. Nesta confiança de que as respostas não têm de estar todas estabelecidas à partida. E que avançar na dúvida pode conduzir a certezas menos frágeis.
Carlos Alves