terça-feira, 20 de maio de 2025

O país que não existe

Os resultados eleitorais de ontem espelham o país que temos. As tentativas de arranjar justificações circunstanciais não convencem nem satisfazem. Porque não é uma coisa circunstancial, é estrutural. Habituámo-nos a ver um país disfarçado de modernidade, a respirar os ares da Europa, a aproveitar algumas virtudes do progresso. No silêncio, vagueavam os que abominavam a modernidade, os que faziam apneia aos ares da Europa e os que, no progresso, não viam virtude nenhuma. 

O país a que nos habituámos não existe. 

Ouço e leio pessoas dizerem que não percebem isto. Os amigos dessas pessoas, as contas que seguem no instagram, as stories que vêem todas as horas, as relações pessoais e profissionais que têm não lhes falavam disto. Pois é. 

Pelo menos desde 2018 que quase todo o meu trabalho artístico, a minha escrita e a minha pesquisa se centram no aprofundamento de uma reflexão sobre ideias de identidade colectiva. Isto implica sair de bolhas muito confortáveis, arriscar ouvir coisas que não me apetecia, ter conversas que me dizem o contrário de tudo aquilo em que acredito, sair de Lisboa para saber que também há um país aí; e, em Lisboa, disponibilizar-me para ouvir narrativas que não encaixam na minha própria narrativa. 

Só que isso não resulta em espectáculos que são “mesmo necessários” nem acaba em edições para uma comunidade de crentes. Os espectáculos “mesmo necessários” só são necessários para quem se quer ver bonito num espelho; e os textos “que dizem tudo”, só dizem o “tudo” em que acredita quem os lê. 

O país ressentido, sem auto-estima, melindrado, medroso, com sede de autoridade, invejoso, individualista, alheio à diferença, a esconder-se com pânico das luzes do progresso, o país da obediência cega, da crença fanática, do “é melhor não saber, que tenho eu com isso, alguém que me defenda”, o país do “antes é que era bom”, e o antes é sempre o século anterior, esse preferimos esquecer que exista. 

Até que se revela. Com estrondo. E aí, não entendemos. E aí, ficamos estupefactos. E aí, concluímos que estávamos a viver numa bolha. A falar e a ouvir como se fossemos um só; a ouvir o que nos convém, a repetir o que ouvimos e a obter os aplausos porque dissemos o que era “mesmo necessário” dizer, igual ao que já nos tinham dito antes. 

Não há nada a fazer? Há. Muito. Resistir, desde logo. É a primeira coisa. A outra é continuar a defender os valores em que acreditamos e arriscar não fechar os olhos aos que não queremos ver. E, mais importante, não ficar pelo que é “tão necessário e tão bonito” e ter a coragem de não falar apenas para os nossos pares; ousar alcançar também os que não sabem o que vamos dizer à partida. Só que isso exige espaço e tempo, e não nos podem estar sempre a dizer que não vai dar. Porque a bolha era muito grande, até a vermos esvaziada num ecrã de televisão; às oito da noite do dia 18 de Maio de 2025.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES - tudo o que vemos e ouvimos vem do exterior

Nota da encenação

Este espectáculo procura fixar memórias de uma identidade coletiva. Só que nem o teatro é um bom sítio para fixar seja o que for, porque é efémero no seu conceito, nem a identidade coletiva é assim tão possível de delimitar. Mas tentamos; e, no limite, as histórias que aqui aparecem são trazidas de um lugar onde sopram muitos ventos e as ideias são como aparições, à noite, à beira de um riacho.

Há uma vila imaginada, ausente do dispositivo cénico, que apenas nos chega pelas palavras dos/as intérpretes. É uma vila trazida pelas personagens, todas deslocadas do ambiente de que tanto falam. No espaço cénico entram muitas histórias e pessoas, mas se não estivermos atentos nem as vemos. E outra coisa de que o teatro precisa sempre urgentemente é dar a ver.

A ideia de arquivo traduzida na cenografia do espectáculo remete para o repositório de ideias que arrumamos, enquanto avançamos a perseguir outras novas. Ilustra também o que fica submerso no jogo das impossibilidades com que se debate a criação artística. As pastas e dossiês são, ainda, símbolos da burocracia contabilística que preside, hoje, ao trabalho artístico. Formulários, folhas excel, facturas com número de contribuinte ocupam muito espaço nos discos rígidos da nossa memória. E é quando arquivada e sem resultado artístico produzido, que a burocracia revela a sua incapacidade para nos servir.

Neste espectáculo, tudo o que vemos e ouvimos vem do exterior. Há sempre uma brisa suave ou uma ventania muito forte a trazer ecos para a cena. Tudo o que vemos e ouvimos não é representável num espaço assim, num palco.

O processo criativo seguiu uma procura pelo tempo certo que é preciso para nos definirmos neste espaço. Não é inovador, é isso que o teatro faz, porventura desde sempre. Nesta confiança de que as respostas não têm de estar todas estabelecidas à partida. E que avançar na dúvida pode conduzir a certezas menos frágeis.


Carlos Alves


Foto: Ana Ferreira


quinta-feira, 13 de março de 2025

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES, uma criação de Carlos Alves, com foco na actividade artística em Portugal

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é adormecer com a sensação de sermos incompreendidos

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é não haver descanso

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é uma história que porventura vai acabar mal

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é um repositório de cenários que já não nos importam

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é um país que preferimos pensar que não existe

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é feito com muita fundamentação artística

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é quando a Páscoa parece o Carnaval

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é sussurrar e haver sempre alguém à espreita

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES é um espectáculo particularmente inovador, já não se via uma coisa assim há muitas décadas




sábado, 25 de janeiro de 2025

Direcção Geral das Artes, uma criação de Carlos Alves

O espectáculo DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES propõe um olhar dramatúrgico sobre contemporaneidade e tradição nas artes performativas. Contando com contributos de muitas pessoas que trabalham em Teatro em Portugal, o texto do espectáculo tenta um olhar sobre as profundezas da nossa contemporaneidade. Fala da(s) nossas(s) identidade(s) e da procura a que ela(s) nos obriga(m). O dispositivo cénico expõe visual e iconograficamente referências ao teatro feito em Portugal nos últimos 20 anos.

DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES explora as ansiedades da criação contemporânea, cruzando a pretensão de encaixar nas linhas de programação com uma pesquisa sobre formas identitárias submersas na memória colectiva de um país. Entre possibilidades e impossibilidades, o drama desafia os medos e as tensões humanas, expondo o teatro como um espaço de relação entre o nosso tempo e os ecos do nosso passado.
"A contemporaneidade arruma com tudo a um canto e transforma o teatro numa confusão de livros e papéis, deixando os teatros reduzidos a repositórios de cenários que já não se querem"

AUTORIA E ENCENAÇÃO Carlos Alves
INTERPRETAÇÃO Carlos Alves, Henrique Gomes, João Pires, Mariana Fonseca, Mariana Guarda, Sandra Sousa
ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO Lau Robert
PRODUÇÃO Ver Imperfeito
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO Lau Robert
CENOGRAFIA Carlos Alves, Silva Henriques
COMUNICAÇÃO E IMAGEM Ana Ferreira, Ver Imperfeito
AGRADECIMENTOS Espaço Imperfeito, Escola Secundária de Camões
APOIO Junta de Freguesia de Carnide, Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, Centro Cultural de Carnide
Projecto financiado por Fundação GDA
Texto do espectáculo escrito no contexto de bolsa literária da DGLAB - Direção-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas

TEATRO MUNICIPAL AMÉLIA REY COLAÇO
28 e 29 de Março
4 e 5 de Abril
21h


Foto: Ana Ferreira (direitos reservados)