As tardes em sítios calmos e retirados podem ser
aborrecidas. Mas ela sentia esse aborrecimento com prazer, era um aborrecimento
que a fazia sentir-se bem. O desapego de não ter deixado nada por fazer por
nada ter planeado e a consciência de que o que fez não tem o valor suficiente
para ser considerado alguma coisa. Uns quantos programas de televisão
consumidos de seguida sem sentido crítico, apenas absorção, enquanto lá fora o
vento se mostrava menos complacente com as árvores que rodeavam tanto o jardim
da casa que agora habitava provisoriamente como o da casa da frente. Não
conhecia o vizinho da frente, tinham-lhe dito até que ele não existia, que
ninguém morava naquela casa. O certo é que as árvores permaneciam lá.
Não choveu nessa tarde, por muito que a ameaça fosse
constante. Se a chuva tivesse caído, teria encharcado o livro que ela deixara
no banco, lá fora no jardim. Abandonara o livro nessa manhã. E abandonara-o
mesmo, para nunca mais o abrir. Dizia Mitchell que um livro lido até metade é
como um caso de amor interrompido. Pois ela já interrompera muitos namoros
literários. Os autores nem sempre são os culpados mas há leituras que não
conseguimos levar adiante com gosto, que nos cansam, que nos dizem pouco, que a
nossa sensibilidade teima em não deixar seguir leve, empenhada e fluentemente.
Virginia Woolf, Isabel Allende, Salman Rushdie contam-se entre os divórcios
improváveis que podem acontecer. E acontecem. E há muitos mais. Que foram
premiados e elogiados, que foram perseguidos, que se suicidaram. E, por fim, as
suas palavras podem ser abandonadas.
A tarde chegava ao fim e era noite de Halloween. As crianças
viriam, certamente, fazer a ronda em busca de doces, armadas com
lanternas. Por agora, a rua continuava
vazia.
Depois do jantar, os meninos apareceram. Já se ouviam quando
ainda vinham longe. Num ermo de tanto silêncio, qualquer ruído é facilmente
identificado. Ela saiu para o jardim, preparando-se para as receber. Em frente,
uma luz avermelhada saía de junto da porta da casa da frente. A casa onde não
morava ninguém, de quem não conhecia o último dono, que nunca ninguém referia,
tinha uma abóbora iluminada do dia das bruxas.
As bruxinhas e os vampiros chegaram, cantaram, falaram,
riram, brincaram e levaram a recompensa devida. Ficaram por ali alguns minutos
até agradecer e partir. Ela cruzou os braços, deitou um último olhar à rua e
voltou para dentro. Estava bem mais quente e a aparelhagem continuava a tocar
num volume baixo. As crianças não foram à casa da frente.
Carlos Alves
Muito bom!!! Gostei Muito !!
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