terça-feira, 16 de setembro de 2014

Uma História de Halloween

As tardes em sítios calmos e retirados podem ser aborrecidas. Mas ela sentia esse aborrecimento com prazer, era um aborrecimento que a fazia sentir-se bem. O desapego de não ter deixado nada por fazer por nada ter planeado e a consciência de que o que fez não tem o valor suficiente para ser considerado alguma coisa. Uns quantos programas de televisão consumidos de seguida sem sentido crítico, apenas absorção, enquanto lá fora o vento se mostrava menos complacente com as árvores que rodeavam tanto o jardim da casa que agora habitava provisoriamente como o da casa da frente. Não conhecia o vizinho da frente, tinham-lhe dito até que ele não existia, que ninguém morava naquela casa. O certo é que as árvores permaneciam lá.

Não choveu nessa tarde, por muito que a ameaça fosse constante. Se a chuva tivesse caído, teria encharcado o livro que ela deixara no banco, lá fora no jardim. Abandonara o livro nessa manhã. E abandonara-o mesmo, para nunca mais o abrir. Dizia Mitchell que um livro lido até metade é como um caso de amor interrompido. Pois ela já interrompera muitos namoros literários. Os autores nem sempre são os culpados mas há leituras que não conseguimos levar adiante com gosto, que nos cansam, que nos dizem pouco, que a nossa sensibilidade teima em não deixar seguir leve, empenhada e fluentemente. Virginia Woolf, Isabel Allende, Salman Rushdie contam-se entre os divórcios improváveis que podem acontecer. E acontecem. E há muitos mais. Que foram premiados e elogiados, que foram perseguidos, que se suicidaram. E, por fim, as suas palavras podem ser abandonadas.

A tarde chegava ao fim e era noite de Halloween. As crianças viriam, certamente, fazer a ronda em busca de doces, armadas com lanternas.  Por agora, a rua continuava vazia.

Depois do jantar, os meninos apareceram. Já se ouviam quando ainda vinham longe. Num ermo de tanto silêncio, qualquer ruído é facilmente identificado. Ela saiu para o jardim, preparando-se para as receber. Em frente, uma luz avermelhada saía de junto da porta da casa da frente. A casa onde não morava ninguém, de quem não conhecia o último dono, que nunca ninguém referia, tinha uma abóbora iluminada do dia das bruxas.

As bruxinhas e os vampiros chegaram, cantaram, falaram, riram, brincaram e levaram a recompensa devida. Ficaram por ali alguns minutos até agradecer e partir. Ela cruzou os braços, deitou um último olhar à rua e voltou para dentro. Estava bem mais quente e a aparelhagem continuava a tocar num volume baixo. As crianças não foram à casa da frente.


Carlos Alves

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